quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

“Cara Ana,
Após ter assistido à sua palestra sobre Igualdade de Género e mais especificamente sobre a conciliação entre a vida pessoal, familiar e profissional, refleti sobre a minha própria vida e pareceu-me ser, de algum modo, um exemplo dessa luta pela igualdade ou, antes ainda, do privilégio de ser “desigual”. 
Não sei se a minha história será, sequer, passível de ser publicada na sua revista, mas aqui vai.
O meu nome é Maria e, como qualquer mulher portuguesa da minha geração, comecei por ser educada para ser diferente dos rapazes, porque assim estava determinado para o sexo feminino.
Felizmente, tenho um pai que é muito pouco convencional. O facto de ter duas filhas pouco importava, quer para a realização das tarefas de trabalho em casa, quer para as atividades de lazer – eu tanto podia ajudá-lo como servente das obras em casa, como ir à caça com ele.
Por outro lado, a minha mãe embora concordasse com esta educação liberal, não abicava da minha educação feminina – o saber realizar as tarefas domésticas, inclusive a tradicional costura. Já a minha irmã não foi sujeita a tal “formação” porque “os tempos já eram outros”.
Deste modo fui crescendo, com a consciência de que havia diferenças entre filhos e filhas sem que, contudo, as sentisse na minha vida familiar, até porque fui a primeira menina a ter bicicleta e mota nos locais onde morei, não por capricho, mas porque o meu pai os considerava meios de transporte adequados às minhas tarefas e às minhas idades.
As minhas amigas e primas não tinham o mesmo tipo de liberdade e autonomia que eu tinha. Em contrapartida, era-me exigida mais responsabilidade em tudo o que fazia. A tal ponto que, com 19 anitos fiquei responsável pela minha irmã (11anos mais nova) porque o meu pai foi trabalhar para o estrangeiro, seguindo-se a mãe porque ele sofreu um enfarte, que nos ocultou durante duas semanas.
Assim, fiquei eu, durante dois anos, a estudar e a desempenhar os papéis de pai, de mãe e de irmã. Mas estava preparada. Embora tivesse abdicado da parte lúdica da vida académica, foi mais uma experiência diferente das jovens da minha idade.
Com este tipo de percurso de vida era óbvio que não seguiria o caminho normal e, quando a mãe regressa, a independência, entretanto adquirida, não se subordinava tão pacificamente à autoridade materna.
Começava uma nova etapa. Sair de casa, perto de Lisboa, ainda estudante, para trabalhar no Alentejo como professora contratada. Com a mudança de região do país, há mudança de universidade também.
Durante anos fui fazendo o curso e desempenhado a atividade profissional. Pelo caminho tive um filho. Não casei mas vivo com o mesmo namorado (pai do filho),em união de facto, há 28 anos.
É claro que, durante este tempo todo, a relação tem sido uma montanha russa. Como todos os casais os primeiros anos são sempre um entusiasmo, mas com o acentuar das responsabilidades, como o nascimento do filho, surgem alguns conflitos, ou meras discordâncias idiotas que acabam por levar a discussões cansativas. No final, já nem sabemos o que deu origem a tamanha tempestade. Contudo, as razões permanecem e podem, à distância, ser identificadas com a objetividade necessária.
E é neste momento que tomamos consciência de que a educação recebida, as vivências e experiências de uma vida forjam aquilo que somos.
A educação separatista entre rapazes e raparigas que se verificava até à cerca de 40 anos e que incutia, desde cedo, papéis diferenciados para homens e mulheres, vinculou durante anos esses mesmos papéis. A mãe cuidava das tarefas domésticas incluindo a educação dos filhos, enquanto o pai / homem era o ganha-pão da família. Poucos eram os que “ajudavam nas tarefas domésticas, ainda que o trabalho lhes deixasse algum tempo livre, sob pena de serem marginalizados pelo preconceito da sociedade e pelos seus pares. O domínio público e o privado da vida dos casais eram associados ao homem e à mulher respetivamente.  
Ora para alguém que não foi sujeito a tal “apartheid”, esse papel, tradicionalmente atribuído à mulher, é como um vestido apertado – desconfortável e irritante.
A tentativa de reservar/conservar tal papel ia afastando ainda mais qualquer possibilidade de conciliação entre a vida pessoal, familiar e profissional. A partilha das responsabilidades e tarefas não estava a ser democrática, especialmente porque, após a licenciatura, cheguei a ter três “empregos”: professora de Inglês, colaboradora da Universidade, o que implicava a deslocação a várias escolas e a sessões de formação na sede, e professora de Português dos “nuestros hermanos”. Além de continuar a ser a principal cuidadora do filho e responsável pelas tarefas domésticas.
Resultado? Ausências prolongadas de casa, consciência pesada por não dar a atenção suficiente ao miúdo, cansaço permanente e mau-humor constante, logo, desgaste da vida familiar e pessoal.
Ora o desequilíbrio que afeta um dos membros do casal, acaba por afetar o outro, ainda que de maneiras diferenciadas. Nesta sobrecarga de trabalho, a relação pessoal ficou para trás e, é certo que, quando nos faltam afetos, vamos procurá-los noutro lado. E há quem tenha tempo, ou se esforce para o ter, e disponibilidade emocional.
E foi assim que o meu filho, aparentemente, ganhou uma irmã.
Foi um sismo emocional! As estruturas tremeram desde os alicerces … e agora fazia o quê? O que está convencionado – a separação? “Convencional” e “Eu” são duas palavras difíceis de conjugar.
Estava na hora de parar e refletir. Não via a situação como traição porque eu também havia descurado a vida pessoal… E, por esta ordem de ideias eu também tinha traído – pelo excesso de atenção ao trabalho e pela falta dela em casa. Ciúme também não sentia, até porque isso não é mais do que arrogância e vaidade. Temos ciúme porquê? Porque somos inseguros, incompetentes ou distraídos o suficiente para deixar apagar uma relação.
Racionalizando a situação, havia responsabilidades a apontar a ambas as partes. Mas era necessário saber mais… Saber exactamente o que queria da minha vida.
Tinha que compreender o contexto todo e que sentimentos estavam envolvidos. E foi assim que recebi em minha casa a alegada mãe da irmã do meu filho e a menina, por quem me apaixonei de imediato – as crianças nada têm a ver com os atos dos adultos.
Confesso que não foi a época mais fácil da minha vida. Mas era o momento de revelar tudo o que nos incomodava. Foi tudo dito! Com mais ou menos sofrimento, sendo que “muito sofrimento” era a expressão do momento. A vida é uma pedra de amolar e testa o metal de que somos feitos.
Chegámos a um consenso – começar tudo de novo, mas com a lição bem aprendida. A partir desse momento, direitos e deveres seriam iguais para ambos.
Interiorizámos que trabalho e família não são compartimentos estanques, separados, mas interdependentes, que homens e mulheres têm necessidade, muitas vezes por razões económicas de partilhar papéis. Acentuou-se a partilha das responsabilidades, das tarefas mais básicas, reduzindo a tensão e melhorando a relação, inclusive a sexualidade.
 As desigualdades, a nível social, relativamente à sexualidade do homem e da mulher são difíceis de combater. Um homem ter outra mulher, embora seja assunto apetecido para comentar, acaba por ser socialmente tolerável – fala-se com alguma pitada de malícia e/ ou admiração de outros homens pelo “feito”, enquanto a mulher é vista como a coitada enganada.
Contudo, se for a mulher a ter uma relação extra conjugal, passa de vítima a carrasco, socialmente condenada.
Foi aqui que demos o maior passo para a igualdade – concedemo-nos o direito de, caso encontrássemos outra pessoa que nos interessasse, não nos coibirmos de encetar uma relação, desde que se respeitasse o dever de nos informarmos sobre a situação.  
Se me perguntar se tenho necessidade de exercer esse direito, digo-lhe que não. Alcancei o que queria – a verdadeira igualdade de género.
Temos o direito, mas também temos o direito de não exercer um direito. Então, é como ter uma licença de uso de uso e porte de arma – por se ter, não significa que se saia para a rua a matar toda a gente. A isto chamo a responsabilidade da liberdade.
Deste modo, aquilo que podia ser a destruição de uma família, acabou por ser o seu renascimento. Ganhei um cozinheiro excecional, um melhor amigo e um companheiro, na verdadeira aceção da palavra. Além de que ganhei uma “filha do coração” parida com muita dor também – ninguém passa por acaso na vida de ninguém!
Se os alicerces forem fortes, dos escombros dos terramotos, a vida renasce com mais potencial, com mais conhecimento para evitar o erro, com mais tolerância e mais respeito pela diferença e pela igualdade.
Em suma, tenho uma vida perfeita? Não, e nem quero, nem acredito que seja possível. Continuo a ter que vestir o pai (porque quando chega ao trabalho vestido por ele, as colegas mandam-no de volta a casa) e a acreditar que continuo a ser o maior apoio do filho. Mas sou eu e, na maior parte do ano, sou feliz!”

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Entre mim e eu


Lembrar-me que não estou só, que não sou só, ajuda a combater o cansaço. Faz-me ir à profundidade do ser infinito que sei que sou e resgatar a força necessária para me manter com a cabeça à tona. Não posso afogar-me neste mar de exaustão, porque não estou só... O Principezinho de Saint Exupéry dizia "tu és responsável por aquilo que cativas". Acrescento que também o somos por tudo o que criamos, ou descuramos....

Cansaço

O que há em mim é sobretudo cansaço — 
Não disto nem daquilo, 
Nem sequer de tudo ou de nada: 
Cansaço assim mesmo, ele mesmo, 
Cansaço. 
(...)
Álvaro de Campos